O EU DE MIM
JANUÁRIO, Sérgio S.
Mestre em Sociologia Política
Nesta semana o Instituto DataFolha divulgou pesquisa sobre o uso de máscaras como medida de proteção contra a transmissão do coronavírus durante a pandemia. Muitos resultados se demonstraram interessantes para fins de compreensão dos comportamentos sociais. Destaca-se o caso de que 92% dos informantes afirmaram que “sempre usam máscaras quando estão fora de casa”. Medida importante considerando-se a situação pandêmica atual.
De forma mais geral, falar de si mesmo é se firmar no mundo das pessoas e das coisas, é aplicar para si uma visão de mundo e de sua funcionalidade; é, propriamente, a forma de ver e assumir a vida a partir de sua própria observação. No conjunto, a cada 100 pessoas, 92 estariam se protegendo e protegendo aos outros com barreiras de transmissão do vírus que ora nos assombra. Poderíamos nos sentir muito seguros quanto a COVID-19. Humm....
Mas este sou “eu” falando de “mim” no mundo. Esta condição, em geral, faz com que as pessoas se promovam como mais relevantes do que realmente são. Expõem mais a forma de como gostariam de serem vistas pelos outros e por si mesma do que a forma como realmente são. Revelam também um processo de proteção para si mesmas, como um cobertor que esconde as mazelas da vida e expõe as virtudes desejadas. Quem sempre fala que “sou assim e assado” ou que “sou isso ou aquilo” tenta provocar nos outros a sua autoimagem. Sempre ou quase sempre deformada, acentuada para melhor.
Isso aparece quando a pesquisa apresenta os resultados para a pergunta sobre o comportamento de uso de máscaras das outras pessoas: 52% afirmam que sempre veem outras pessoas de sua cidade usando máscaras; é falar dos outros e de seus comportamentos.
A diferença entre os resultados é clarificadora de como nos vemos no mundo e como enxergamos os outros. Os outros, perante mim, estariam abaixo de minhas potências, de minha força e de minha bondade pessoal. “Se os outros fizessem como eu faço”, então o mundo... Ou se cada um fizesse a sua parte como eu faço a minha, então tudo estaria resolvido. As boas intenções de sempre que eu desejo promover são medidas por mim para os outros. Os outros, meros repositórios de meus desejos.
Sendo “eu” esta centralidade de virtudes capaz de ser a medida para os outros, percorro logo um caminho curto para o julgamento e a sentença. Agora juiz, são minhas réguas as medidas das coisas e das pessoas. Num mundo cada vez mais entorpecido pelo egoísmo das atitudes cotidianos, o “eu tenho o jeito certo” torna o falante um opressor, um ser disjuntivo, autoritário e, no mínimo, socialmente deseducado para a vida de cidadania [reconhecer os valores dos outros] e da democracia [permitir a divergência com respeito e elegância].
Somos menos virtuosos do que pensamos ser, menores do que acreditamos ser. Beiramos a arrogância, namoramos com a vaidade e somos comensais da intolerância. Daí a dificuldade de aceitar que a cidadania política e a democracia social possam ser parâmetros de nossas atitudes. Cidadania e Democracia requerem, antes de mim mesmo, considerar os outros, tolerá-los, e, até mesmo, desejar a crítica que possam emitir. Democracia e Cidadania estão ainda longe, muito distantes, perdidas no horizonte de nossa história política e social que poderá vir a ser.
Se 92% usam máscara para proteção contra o coronavírus, não poderiam observar apenas 52% usando máscaras na medida que os que observam e afirmam são os mesmos que são observados e vistos. Há 40 pontos percentuais [92-52] que veem os outros, mas não enxergam a si mesmos. Máscara por máscara sofrem a democracia e a cidadania.
Pesquisa Datafolha com coleta de dados mediada por telefone realizada nos dias 11 e 12/08/20, amostra de 2.065 entrevistados.
Sugestão de Trilha Sonora: EVERYBODY WANTS TO RULE THE WORLD
Autor: TEARS FOR FEARS
Álbum: SONGS FROM THE BIG CHAIR
Data de Lançamento: 1985
Crédito de Imagem: Pinterest
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