AMAR A SOMBRA DO SEU UMBIGO
JANUÁRIO, Sérgio S.
Mestre em Sociologia Política
A vida em sociedade exige de cada indivíduo a capacidade de se deslocar de si mesmo e viver em relação ao conjunto de outros membros e dos resultados de suas relações. Na verdade, o indivíduo social somente poderá existir em suas relações sociais e não em si mesmo. Até para ser sozinho é preciso se referir aos outros. As identidades sociais amplas, ou de pequenos grupos sociais, de bairros ou de comunidade somente poderão existir no acordo cultural de uma vida compartilhada em valores sociais. Um ou outro indivíduo poderá se destacar aqui ou ali, mas estará submetido aos ditames da vida social. Tentar ser maior que a sociedade é como arrancar seus próprios olhos, ouvidos e língua.
A identidade de cada indivíduo não será registrada pelo que ele diz ser - sua autoimagem, mas somente pelo resultado do conjunto de relações sociais nas quais encerra sua personalidade e recebe dos outros um conjunto de contra-ações e inter-ações muitas vezes individualmente perturbadoras, mas coletivamente ajustadas.
O querer de cada um estará diluído no enredo social do aceitável e do repugnante. E cada vez que um indivíduo acredita que poderá falar quaisquer coisas simplesmente porque deseja – e isso é tudo – poderá sofrer sanções sociais e repulsas em seus relacionamentos. Pensar individualmente ou isoladamente é gerar uma guerra psicológica para si e uma conturbação em suas relações na medida em que as condições coletivas tenderão a prevalecer.
Em sua casa ou fora dela você estará obrigado a aceitar regras sociais e condições culturais que permitirão que você continue socialmente integrado. Caso contrário, a rejeição social fará o papel de controle sobre as pessoas, colocando-as cada vez mais distantes do que se anuncia como importante, relevante, aceitável, correto, conjuntivo, útil, agradável etc.
Em geral, o padrão egoísta de existência exigirá do indivíduo uma necessidade de estar sempre em luta em relação aos outros, de percorrer trilhos bélicos para fazer da sua vontade algo que possa satisfazer a si e aos seus anseios isoladamente. Ledo engano: quase todos os outros se afastarão porque tal comportamento é um fardo social. E sem ter a quem dominar para prevalecer seu querer ou sem a existência da relação de dominação não haverá possibilidade de instalar hegemonia de sua vontade.
Isso somente é tolerado em crianças em sua fase inicial de socialização quando, por ser infante, ainda não entende as regras sociais e as condutas culturais e tenta fazer com que os outros aceitem sua vontade por birra na maioria das vezes. Vontades egoístas serão sempre arbitrárias e, para os seus praticantes, se já iniciados, provocarão sofrimentos pessoais – sem as mãos da sociedade para afagá-lo.
A socialização, no primeiro momento de embate para que as crianças [grandes ou pequenas], será um arrasto de “nãos”. Isso traduz a luta entre o individual e o coletivo aplicada pelo núcleo familiar. Após a fase de socialização – quando os membros sociais assumem e asseguram a existência das regras sociais para si e para os outros –, a sociedade passa a transpor-se entre os dias, com modificações aqui e ali para encarar as novas condições que sempre nos aparecem. Isso ocorre todos os dias, dia após dia, numa sequência que nos estabelece segurança ontológica baseada na crença de que o dia seguinte terá as mesmas conformidades de hoje e de ontem, ainda que exija mudanças na medida das combinações possíveis das relações sociais. Mas sempre haverá um ponto médio.
Quando isso não ocorre um conjunto de transtornos sociais passam a emergir, e os envolvidos entram em campo de luta e de forças num cenário meio desajustado. Se isso é assim no quotidiano nosso, tal situação se torna ainda mais complexa quando nos referimos a cargos executivos – porque decisivos – de gestão pública. Quando se despreza a lógica social das relações mundanas em nome do eu-ego e do meu para mim a conturbação social e política em quaisquer níveis decantará a legitimidade e deslocará a hegemonia. É com a legitimidade social e a hegemonia política que alcançamos níveis satisfatórios de docilidade social e utilidade econômica – em termos sociológicos, políticos e antropológicos.
Para qualquer gestor público ou privado, entender-se no mundo e compreender o que está ao seu redor sempre proporcionará capacidade ampla de influência sobre as relações sociais e sobre os membros de uma sociedade. A “verdade” é uma combinação de convenções sociais praticadas pelos membros de um grupo social; é necessariamente coletiva. Por isso a imprensa deve ser livre e os gestores públicos deverão ser públicos. A sua verdade é, por princípio, uma mentira que suporta a sua autossatisfação.
"É a verdade o que assombra
O descaso o que condena
A estupidez o que destrói"
Sugestão de trilha sonora: Metal contra as Nuvens
Artista: Legião Urbana
Álbum: V
Duração: 11:27
Composição: Renato Russo, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos
Lançamento: Novembro de 1991
Imagem: Google Imagens
Vídeo: You Tube.