A SEGURANÇA NO ESCURO DA NOITE
JANUÁRIO, Sérgio S.
Mestre em Sociologia Política
Estamos, a todo o tempo, procurando segurança para nossa vida pessoal e social. Já nos acostumamos a ter a segurança ontológica, aquela que faz com que você e eu não precisemos nos preocupar se o chão vai sumir, se o teto ou as nuvens irão desabar. Segurança que nos leva a acreditar que amanhã será mais um dia para vivermos, ainda que não sejamos imortais. A segurança ontológica surge no meio das tempestades do cotidiano e nos faz seguir caminhando: sempre há vida com estabilidade para ser vivida.
Estamos à procura de segurança na vida social. Esta já tem condição de existência com menor grau de certezas. Isso porque a segurança social é, necessariamente, compartilhada com outros e no fluxo da existência dos outros. Esperamos que os outros acreditem na mesma condição de sermos e assim poderemos existir juntos, a compartilhar interesses, e vontades, e desejos, e futuro, e destino [Baumann]
Ao mesmo tempo existimos a nos prevenir dos riscos de viver em sociedade. Nossos carros têm mais sistemas de proteção do que rodas; nossos portões são portadores de “abre para mim e fecha para os outros”; nossas casas ou mesmo nas ruas há câmeras a fazer a vigília que nossos olhos não conseguem efetivar: olhos de nossos temores tentando descobrir passos em direção à escuridão dos medos sociais. Em tudo há senhas.
Buscamos proteção contra a alimentação feitora de maldades, contra os colapsos potenciais do corpo com academias; adquirimos medicamentos, sem compreender o que são e apetitosos para o que servem como moldura de segurança metafísica. A cada dia procuramos fazer coisas por nós mesmos o que, experimentado ou imaginário, para evitar os perigos que os outros podem nos causar.
Tudo isso no terreno da individualização. Diferente do egoísmo, a individualização diz respeito ao fato de você enxergar no espelho sempre a sua própria imagem, de projetar seu caminho não contra os outros, mas a seu favor. O egoísta necessita combater, competir, ser contra o outro para conseguir ir adiante.
E o processo educacional está a alimentar o mais perverso dos mundos: a consagração da individualização. As formações de ciências humanas que tinham como origem o fenômeno coletivo, a interpretação do mundo social e a intelectualização dos alunos, foram colocadas em campos de concentração, desnutridas ao extremo e preparadas para o “banho com chuveiro de gás”. As universidades estão produzindo o elogio ao indivíduo-unidade. Para ser profissional vale a conversão do conhecimento ao instrumentalismo mercadológico: preciso fazer um curso que me dê bom emprego, boa renda, prestígio.
Com “razão” os cursos têm oferecido recompensas em formação individual para que cada aluno seja capaz de operar alguma tarefa para sua conquista pessoal, para que se coloque no mercado, obtenha boa remuneração, possa consumir com privilégio e para que possa se portar como destaque social. Disciplinas que têm como orientação inicial e final o pensamento e a ação coletiva não podem prosperar em um ambiente cujo indivíduo-eu seja a prevalência e a incidência do mundo.
Como numa competição no Coliseu, olhamos para o outro e vimos nele a transparência do fantasma, meio sem forma, meio sem identidade, meio sem existência individual. É nessa escuridão da noite que podemos nos sentir seguros, posto que os tropeços do dia ficam pelo lado de fora do portão e eu, comigo mesmo, com minhas selfies, possa gerar o trono, a coroa e o reinado. Os súditos entram com minha permissão, sob controle remoto, nas telas, para suportar meus julgamentos.
Multidões fazendo! Só não sabem o que, porque, e pelo que. Toda tradução do enredo se faz no mundo próprio e sombrio de minha própria permanência no mundo. O amor é, talvez, o regime da autoestima: o exorcismo do coletivo.
Sugestão de Trilha Sonora: BEATRIZ
Artista: Milton Nascimento
Álbum: O Grande Circo Místico
Compositor: Chico Buarque e Edu Lobo
Lançamento: 1983
Crédito de Imagem: Pinterest